Por seu papel constitucional de defender direitos individuais e coletivos das pessoas necessitadas, a Defensoria Pública é um fator essencial para a reconstrução social do Brasil, e por isso deve ser fortalecida.
A opinião é da presidente da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep), Rivana Ricarte, que foi reeleita e empossada em fevereiro para mais um biênio no cargo, que ocupa desde 2021.
Ela classifica os últimos quatro anos como de resistência: o arrocho nas pautas penais, a instabilidade político-econômica, a redução do investimento em pautas sociais e a Covid-19 fizeram aumentar o número de potenciais assistidos e ameaçaram conquistas anteriores. A instituição habilitada a atuar em defesa dos hipossuficientes, por sua vez, ainda está longe de ter condições de fazer frente ao desafio.
Em 2022, terminou o prazo de oito anos que a Emenda Constitucional 80/2014 deu para a que União, estados e Distrito Federal instalassem Defensorias em todas as unidades jurisdicionais do país. Para Rivana, essa seria mesmo uma meta difícil de cumprir. Uma expectativa razoável, segundo ela, seria de, ao menos, 70% das comarcas com representação. Dados atualizados ainda estão sendo compilados, mas estima-se que esse número só alcança 50%.
A extensão do alcance da Defensoria é relevante porque esses profissionais atuam como agentes políticos, tentando acordos e soluções extrajudiciais antes de acionar a Justiça. Cada estado tem suas especificidades, mas hoje há uma rede de contato para trocar experiências e boas práticas entre os defensores.
Por isso, Rivana defende a valorização da carreira e não hesita em combater o uso de advogados dativos — particulares contratados para atuar no lugar de defensores públicos onde eles não se fazem presentes.
“Por que você vai gastar dinheiro público para pagar um advogado privado quando você tem constitucionalmente uma instituição pública que era pra fazer aquilo? Esse dinheiro que está sendo pago para o dativo era pra ser investido aqui na Defensoria”, diz ela.
Fortalecer a Defensoria Pública, ela alerta, é uma necessidade. “Se a gente está tentando, de alguma maneira, melhorar o país, tem de dar condição da pessoa que se sentiu lesada buscar a sua melhoria. Não existe outra instituição para poder fazer isso.”
Leia a seguir a entrevista completa:
ConJur — O Brasil passou por transformações sociais, políticas e econômicas. Como isso afetou as Defensorias no último governo, nesses quatro anos com maior foco em punitivismo, armamentismo e com Covid-19?
Rivana Ricarte — Eu diria até que foram mais do que os últimos quatro anos, a instabilidade política do governo Temer já impactou as Defensorias. De 2016 pra cá, houve essa mudança de chave: redução do investimento no social e abertura para o neoliberalismo. O país precisa crescer, mas houve uma perda de investimento no social e óbvio que isso impacta o trabalho da Defensoria Pública. As pessoas empobrecem mais, isso também tem um impacto. Fora o arrocho maior em pautas penais.
Das instituições do sistema de Justiça, a Defensoria é a mais nova e a que tem maior déficit orçamentário, então a diminuição do orçamento do país impacta nosso crescimento. Um impacto direto é aquele da Emenda Constitucional 80, que previa que, até 2022, deveria haver Defensoria em todas as comarcas. É óbvio que a gente sabe que isso era um sonho difícil de acontecer. Mas todas as questões econômicas do país impactaram também esse crescimento. Houve aumento de defensores nesses últimos oito anos, mas a gente não chegou a nem 50% das comarcas, quando esperávamos uns 70%. Foi um trabalho de muita resistência.
ConJur — Resistência como, exatamente?
Rivana Ricarte — Resistência a retroceder nos avanços conquistados há décadas nos direitos, nas pautas positivas. A gente achava que estava avançando do ponto de vista de sociedade, de construção de política social, política pública, mas passou a ver um caminho inverso. Houve uma discussão longa para implantar a audiência de custódia. A suspensão do juiz das garantias foi um retrocesso. Do ponto de vista dos povos indígenas, houve um trabalho de reconhecimento de territórios e, depois, um retroceder de todas essas práticas. Tudo isso impacta o trabalho da Defensoria. Tivemos de fazer um trabalho muito forte de preservação da nossa autonomia. São essas pequenas coisas que, no meio de tanto arrocho, a gente pode comemorar.
ConJur — Agora parece que há uma virada de chave política no país. Nesse momento de tentativa de pacificação, qual é o papel da Defensoria?
Rivana Ricarte — Nossa expectativa é que, de fato, se volte a desenvolver políticas públicas. E a Defensoria não pode estar desassociada disso. Todas essas pautas de reconstrução tocam no trabalho da Defensoria. É isso que a instituição vem buscando: ter esperança de que essa reconstrução do país seja feita junto com esse olhar de crescimento e de fortalecimento da Defensoria Pública.
ConJur — Como definir hoje o custo-benefício da Defensoria Pública para o país?
Rivana Ricarte — Não dá para colocar um valor. Para termos um país com menos fome, menos desigualdade, investir na Defensoria é um caminho. Segundo dados do próprio Ministério da Justiça, o país tem 213 milhões de pessoas e 80% delas são potenciais usuários da Defensoria — investir nela é investir nessa população. Eu costumo dizer que a Defensoria é como o SUS: você só vai procurar serviços de saúde quando ela não está boa. Quando algo não deu certo, a pessoa não teve acesso à escola, à saúde, à moradia, ela vai ter de ingressar no Judiciário. Mas ela não tem como, porque não tem como arcar com os custos. O benefício da Defensoria é atender a essas pessoas e, com isso, tirar o país de um estado de miserabilidade. As pessoas vão conhecendo seus direitos e os buscando. E isso já faz a máquina girar.
Se a gente está tentando, de alguma maneira, melhorar o país, tem de dar condição da pessoa que se sentiu lesada buscar a sua melhoria. Não existe outra instituição para fazer isso. E a Constituição é bem clara: a função da Defensoria é essa. É completamente diferente do trabalho da advocacia. A gente não compete com a advocacia. O nosso trabalho tem atendimento individual, mas tem muito do coletivo e da transformação social. Muitas vezes, em uma cidade em que não tem a Defensoria Pública, o Judiciário tem poucos processos e não é porque não tem problema; é porque as pessoas não têm a quem reclamar.
ConJur — Falando nisso, como está a relação com a advocacia, na sua opinião?
Rivana Ricarte — São carreiras diferentes. São carreiras irmãs, mas isso já está muito estabelecido até pelas decisões do STF em questões de autonomia: a Defensoria é uma instituição diferente da advocacia. O advogado dativo é um arremedo para cobrir quando não tem a Defensoria Pública instalada. E a gente combate o dativo. Por que você vai gastar dinheiro público para pagar um advogado privado quando você tem constitucionalmente uma instituição pública que era para fazer aquilo? Esse dinheiro que está sendo pago para o dativo era pra ser investido na Defensoria.
Um dativo às vezes recebe, para fazer um júri, o mesmo valor que o defensor recebe de salário o mês inteiro para fazer todos os júris que são da sua competência, fora os atendimentos. Pagar o dativo é desperdiçar dinheiro público. Eu compreendo o fato de não ter Defensoria e haver a nomeação do dativo. Mas a lógica tem de mudar. Esse dinheiro tinha de ser direcionado para a Defensoria Pública, para que haja uma expansão numérica mesmo.
ConJur — Qual é o tamanho do déficit?
Rivana Ricarte — Há pouco mais de 6,5 mil defensores, mas 11 mil promotores. Isso no âmbito estadual. A gente precisava ter pelo menos uns dez mil defensores públicos para termos uma situação um pouco mais equivalente. É um problema do poder público, que precisa investir na instituição que é forjada pra isso. E fora o suporte. É muito diferente quando a pessoa é o defensor de uma comarca específica, conhece os outros processos. É diferente de ser um advogado que, muitas vezes, está no corredor do fórum e é chamado na hora para fazer uma audiência. O suporte e o conhecimento melhor daquele processo é completamente diferente. É isso que a gente combate: o investimento do dinheiro do poder público no lugar errado.
ConJur — Qual é a função da Anadep?
Rivana Ricarte — A Anadep é uma associação nacional que reúne as associações das Defensorias dos estados e do Distrito Federal. Hoje, as 27 unidades da federação têm Defensoria estadual instalada constitucionalmente. A partir da instalação, formam-se associações — algumas surgem antes mesmo da própria Defensoria, para trabalhar pela criação dela. A Anadep é anterior, já trabalhava para que a Defensoria estivesse na Constituição. Ela reúne essas 27 associações para pensar em conjunto o trabalho de fortalecimento e crescimento da Defensoria Pública, de defesa das prerrogativas das defensoras e defensores públicos e das pautas que atingem o trabalho de defensora e do defensor público.
ConJur — E que pautas são essas?
Rivana Ricarte — Interessam muito aquelas que vão atingir os usuários do serviço da Defensoria, porque com isso estamos contribuindo para o arcabouço legislativo e jurídico do país, mas principalmente o que impacta o trabalho do próprio defensor. Acompanhamos os projetos de lei que impactam a carreira em si, as pautas eminentemente associativas, de prerrogativas, e as pautas que impactam o usuário. Talvez acompanhemos hoje em torno de mil projetos de lei em tramitação. E, na parte jurídica, aquilo que de alguma maneira atinge prerrogativas e a autonomias das Defensorias. Não fazemos, enquanto associação nacional, a defesa da atuação de um colega, mas, sim, a defesa institucional.
ConJur — Se a Anadep é anterior à Constituição e só em 2019 todos os estados brasileiros passaram a ter Defensoria constituída, como é que chegamos até esse ponto e por que não fomos tão longe quanto deveríamos?
Rivana Ricarte — Eu digo que chegamos até aqui porque somos muito destemidos, criativos e gostamos muito do que fazemos. Então nos dedicamos muito. Mas, voltando um pouquinho a história, já existia Defensoria, assistências judiciárias, antes da Constituição de 1988. Já existia em Minas Gerais, no Rio de Janeiro, no Mato Grosso do Sul. Existia alguma organização judiciária às vezes dividida com a Procuradoria do Estado. Por isso que temos Defensorias como a do Rio, que tem 70 anos, e a Constituição tem muito menos tempo.
ConJur — Isso era bancado pelo estado?
Rivana Ricarte — Sim, pelo estado também, mas não era o serviço da assistência pela Defensoria como instituição autônoma, era um braço da Procuradoria. Então, foi criado na época a Fenadep. Era época da discussão da constituinte, então o trabalho deles era em Brasília, de colocar a Defensoria na Constituição. É quando vem o artigo 134 da Constituição. Ao longo dos anos, com a reforma do Judiciário, a Constituição foi alterada e também foi criada a lei complementar de regência.
O grande passo foi quando a Defensoria conseguiu a autonomia administrativa e financeira. É o que nos possibilita alavancar o crescimento. Durante muito tempo não se tinha isso, então as Defensorias não cresciam tanto.
Um outro giro de crescimento da Defensoria Pública é a Lei Complementar 132/2009, que permite atuar na tutela coletiva. Passamos, então, a atuar com um impacto maior na formação de políticas públicas e, com isso, o trabalho vai ficando mais conhecido. E, em 2014, com a aprovação da Emenda Constitucional 80, conseguimos levar ao Congresso Nacional essa discussão, de que a Defensoria não estava em todo o país.
ConJur — Era muito defasado?
Rivana Ricarte — São Paulo só criou sua Defensoria em 2006. O maior estado do país, mais populoso, mais importante do ponto de vista econômico. E o Amapá só criou em 2019. Então, é um trabalho sobre a construção da importância, do fortalecimento e da presença da Defensoria Pública na comarca. Essa discussão se tornou muito pujante, a gente conseguiu elevar o discurso de que era preciso ter Defensoria em todas as comarcas. E aí a Emenda Constitucional 80/2014 propôs isso num prazo de oito anos. Em 2014, a Defensoria estava em 20% das comarcas do país, o que é muito pouco. O prazo terminou em dezembro do ano passado, e se avançou muito: o número de defensores públicos mais do que dobrou. Ou seja, houve maior investimento dos governos dos estados pra fazer concurso, a carreira se tornou mais conhecida, mais atrativa. Ter defensores públicos professores universitários, como tem juiz, como tem promotor, faz com que o trabalho seja mais conhecido também no meio acadêmico. Tudo isso vai gerando essa confiança, esse crescimento. Agora, o que falta avançar depende muito do orçamento.
ConJur — Falta dinheiro para bancar a Defensoria Pública pelo Brasil?
Rivana Ricarte — Falta orçamento e falta consciência do gestor público de repartir melhor o orçamento e entender a importância de expandir o trabalho da Defensoria. Os elogios que a gente escuta, eu costumo dizer, são pela nossa criatividade de atuação: nós não estamos em todas as partes, então como fazemos? Vamos lutar para ter emenda parlamentar e conseguir uma carreta da Defensoria, um atendimento itinerante para suprir a falta da estrutura física na comarca, por exemplo.
E, fora isso, acho que um dos grandes impactos é essa atuação coletiva. Há a compreensão de que, como agente político, é preciso se envolver em outras partes, como nos conselhos da mulher, do idoso, da criança. Os defensores estão envolvidos na comunidade, nos estados, nos municípios e, com isso, contribuindo e fazendo essa rede de atendimento. Ninguém faz nada sozinho. Pela impossibilidade de estar em todos os lugares, a gente tem de reconhecer que é preciso fazer o trabalho em rede.
ConJur — De que maneira o defensor se descobre esse agente político e como ele pode atuar efetivamente?
Rivana Ricarte — Quando eu digo agente político, é porque o defensor não é um servidor público que tem um horário pra entrar e horário pra sair. A atuação não é só processual, é também extra processual. Quando alguém se torna defensor, começa a ver que sua obrigação não é apenas estar na vara designada pelo juiz. A pessoa vai para uma cidade do interior e vê milhares de problemas, visita um hospital, uma escola, vê a condição do prédio. E, nesse sentido, enquanto agente político, senta com as pessoas responsáveis para ver como pode contribuir. E tenta construir uma parceria de projetos com o Executivo e também com o Legislativo.
ConJur — Antes de judicializar, portanto…
Rivana Ricarte — Muitas vezes, entrar com uma ação não vai resolver o problema. Há um hospital numa cidade do interior com falta de recursos. Será que entrar com a ação vai resolver? Às vezes, o defensor vai ter de formar parceria. Muitos estados já fazem isso, é chamado SUS Mediado, para que se encontre uma solução mediada para a questão, para que a prefeitura forneça medicamento sem precisar ajuizar a ação e, com isso, não impactar as contas em outras questões.
ConJur — Essa visão é bastante moderna, ainda mais em um país cujo Judiciário tem 80 milhões de processos. De quando vem isso?
Rivana Ricarte — Não sei dizer a partir de quando, mas faz muito tempo que a Defensoria já age dessa forma. Acho que esse é o futuro da Justiça, pois não adianta entrar com mais ação para entupir o Judiciário de demanda, não dar conta delas e não buscar outra coisa. Houve até uma discussão sobre a prerrogativa de requisição de documentos pela Defensoria Pública. Muitos não entenderam, acharam que era um poder do defensor. Para fazer esse trabalho, se o defensor puder requisitar a documentação, ele consegue encurtar o processo e, às vezes, não judicializar uma demanda. Se não puder requisitar, vai ter de judicializar para ter acesso àquele documento.
Ou seja, criava-se mais uma ação desnecessária para resolver um problema que não é do defensor, é do assistido. Muitas vezes, ele não tem acesso a um cartório para buscar seu registro civil. A Defensoria lida com pessoas muito simples, e tem tentado essas conciliações na esfera cível e na área de família.
ConJur — A senhora é de João Pessoa e atua como defensora no Acre. Pela sua experiência de atuação e, depois, na diretoria da Anadep, qual é a sua percepção sobre as diferenças da atuação dos defensores nos estados?
Rivana Ricarte — São diferentes porque os estados são grandes e os problemas são muito regionalizados. O problema de um estado não é necessariamente o mesmo do outro, e por isso a atuação da Defensoria é diferente. No Pará, por exemplo, existe o Núcleo Agrário, mas essa não é uma estrutura comum em outras defensorias. Mesmo as questões indígenas são diferentes. No Acre não há um grande problema em demarcação de terra indígena, é uma questão que já foi enfrentada. Mas esse é um problema gravíssimo no Mato Grosso do Sul, e a maneira que esse defensor vai atuar é completamente diferente do que ocorre no Acre.
Então, as diferenças regionais têm impacto na organização das defensorias. E outra questão também é tamanho do estado e o número de defensores. Em um estado como Amazonas, que é continental, em que há cidades a que não se consegue chegar por estradas, é muito mais necessário que o defensor vá para um pequeno município e fique lá. Não há como ele fazer um atendimento itinerante. Em um estado em que haja muitas rodovias perto, às vezes um defensor consegue dar conta de dois, três lugares, mas não é o ideal. Não há um sistema único do ponto de vista de atendimento, porque o país não é único. Acredito que isso aconteça em todas as instituições do sistema de Justiça. Mas o Direito é o mesmo.
ConJur — Como assim?
Rivana Ricarte — Há problemas que são os mesmos em toda parte. No Direito de Família, sempre vai ter problema de violência doméstica, de pensão. Sempre vai ter problema criminal. As condições carcerárias são péssimas em todos os lugares do país. Então, essas coisas são recorrentes, o que faz também com que os defensores possam trocar muita experiência. Hoje, é muito mais fácil um colega como eu no Acre ter contato com o defensor lá do Rio Grande do Sul e a gente pode trocar experiências e adaptar a maneira de atuar.
ConJur — E como funciona essa troca de experiências? É um canal ou é simplesmente o contato que os defensores têm uns com os outros?
Rivana Ricarte — Tem muitas maneiras. É óbvio que hoje em dia há os canais de rede social em que se formam grupos de áreas específicas, isso é comum. Mas, através da associação, há alguns anos, temos as comissões temáticas que estimularam isso. Hoje são 13, e elas foram criadas pra auxiliar a diretoria em determinadas questões.
Para acompanhar pautas no Legislativo, é preciso ter a experiência de pessoas que já estão trabalhando com uma determinada pauta para poder auxiliar na análise de um projeto de lei, sugerir alterações, melhorias. As comissões temáticas foram se criando e, com isso, naturalmente defensores que atuam nas mesmas áreas vão se unindo. Os congressos trazem um espaço para os colegas apresentarem práticas exitosas. Vivemos na sociedade da informação, então hoje isso ficou mais fácil.
Fonte: ConJur – Entrevista: Rivana Ricarte, presidente da Anadep